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Vallda: Abraçada à vida



Ela sempre foi pautada por sonhos, escrevia-os. Escrevia, escrevia e escrevia, mas a sua zona de conforto eram as paredes brancas do seu lar.
Jamais os proferiu e ao ser da sua casa, sempre quis isolar-se, jamais quis ser vista, pois sempre que se sentia observada, combalia-se e escrevia, escrevia e escrevia. Havia, subtilmente, uma cor escura e sombria no seu horizonte que se adivinhava tão torpe, da mesma forma, suas vestes eram tão negras. Haviam seres e espaços que diferiam ao  seu redor, vozes que se assemelhavam à trovoada, palavras tão bélicas que lhe dilaceravam o peito e lhe feriam a alma, por isso ela escrevia, escrevia, escrevia. O passado pesava-lhe na memória e na consciência. Era o peso de uma culpa que ela, julgava que possuía por dentro e que não admitia que fosse apontada por fora. Seria então a culpa mais envergonhada que ela sentia, por ter sido a pessoa mais frágil e mais vítima de si própria e o único orgulho que hoje sente foi o de, na certeza da depressão, sem ajuda especializada, nunca ter recorrido ao suicídio.
Esta mulher, sabia que talvez o melhor poderia chegar, e talvez por isso ela escrevia, escrevia, escrevia.  E foi assim que, timidamente, se foi libertando das suas tão pálidas paredes.
Um dia, um dos seus seres mais próximos, partiu, mas partiu cedo demais e para um sítio desconhecido que ela não sabia se era longínquo, para um mundo que os vivos não conhecem, então ela escrevia, escrevia, escrevia. Os trajes negros eram outros, teriam outro significado, sendo a mesma cor. Foi aí que entendeu.
Talvez tenha sido uma mensagem da vida para ela, um código qualquer, (re) enviado por um Deus que uns acreditam e outros nem querem saber, talvez tenha sido a forma, que o destino encontrou para lhe despertar o verdadeiro sentido da vida. Porque ela só escrevia, escrevia, escrevia. Porém, deixou que o tempo corresse um pouco, até que num despir de vestes negras, ela entende que o tempo mata, que a vida é uma bomba relógio e decide que essa morte seria o seu ponto de partida. É assim que ela abraça o vermelho, o rosa, o branco como suas cores prediletas, escrevendo-as na alma em sinal de libertação, ela só escrevia, escrevia, escrevia.
A partir daí, desceram anjos à terra. E aquelas paredes tão suas, habituavam-se a, esporadicamente, permanecerem sozinhas, pois os anjos levavam-na a conhecer outros mundos, a que ela prontamente aceitava.
Um dia, santo dia, foi exposta, dando a cara, por escrever, escrever, escrever. Não era o jornal do mundo, era o jornal do seu mundo que lhe "leiloavam" o rosto e a alma à mercê de olhares surpreendidos ou reprovadores de quem seu passado não agradou, por isso sua mente barulhenta e confusa questionava-a se estaria no sítio certo. Contudo, ela tentou enfrentar o seu próprio mundo. E suportando o peso onírico daquele jornal nas mãos procurou a opinião mesmo que ilógica de um ser acima, que num Alzheimer conturbado lhe respondeu:
-"O senhor que partiu, ia gostar" .
Subitamente, a lágrima desceu de sua alma tão tépida e em silêncio respondeu, apenas para o seu introspecto:
-"Se o senhor não partisse, os anjos não desceriam. Não, pois não? As vestes ainda, seriam negras, eu não seria o vermelho, o rosa, o branco e... e naquela capa "milagrosa" do jornal não seria eu, seria outra pessoa em meu lugar, de mente, mais livre, mais aberta, mais corajosa, que levada pelos mesmos anjos faria melhor presença! Porque foi necessário que o senhor partisse para que eu acordasse."
Então é isso, ela só quer ser livre, libertina, quer viver intensamente voar, voar, voar, ter asas, ser ave de rapina, abraçar o desafio, ser feliz, independente, emancipada, antes que o seu tempo termine e num ápice, todos os seus sonhos fiquem por concretizar, porque a vida tem tendência para ser curta, demasiado curta, por vezes demasiado má,  e para alguns elide sem aviso prévio. Ela continua a escrever, escrever, escrever, com os seus anjos por perto, não são muitos, são alguns e espalhados por aí, as vezes emprestam-lhe suas asas e abraçada à vida, ela começa a voar! Mas, sim, o senhor que partiu iria gostar...

Vallda

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